Sábado estava muito mau tempo.
Ao final do dia, comi sopa à lareira antes de regressar a casa e olhei para o boletim meteorológico na televisão.
Brevemente vamos esquecer este mau tempo, pensei eu, e acho que até disse em voz alta que nada era definitivo, quer dizer, este momento não deve ter sido exactamente assim mas na minha cabeça é como o recordo e isso é que conta, não é?
Os ricos vivem melhor.
Têm sapatos mais confortáveis e casacos mais quentes e protectores.
Debaixo dos bons materiais, fofos e quentes como um edredão de penas, forros que escorregam como cetim, enfim, o Inverno é mais suave para os ricos.
Ou para quem comprar um bom saldo.
A minha mãe emprestou-me a sua parka e eu agradeci.
Protegeu-me do frio e da chuva, eu andava mesmo confortável e ela tem assim um feitio em forma de pêra rocha do oeste, com uma gola redonda, forro de tigreza, é mesmo uma peça gira.
Pus a mão no bolso e estava lá um papel.
Olhei para ele e foi como uma assombração:
um papelinho branco, um rectângulo de 5 por 3 cm, com uma lista de afazeres.
E não era meu!!!
Era da minha mãe.
Mas igualzinho às minhas listas diárias, semanais, mensais, listas de tarefas que tento completar em cada dia.
Se o ano tem 365 dias como dizem (que às vezes acho que não tem) eu faço 350 listas à vontade.
São coisinhas com um hifen atrás, que às vezes se podem desdobrar, podem ir desde lidas da casa a telefonemas a doentes ou a cortar as unhas.
Fiquei a olhar para aquilo, eu não sabia que a minha mãe também as fazia, fiquei ligeiramente assombrada e ligeiramente irritada pois eu, como toda a gente, quero ser única no mundo.
Afinal sou igual à minha mãe, até nas parkas.
Nunca li o diário de Anne Frank.
Isso deve ler-se por volta dos 1o, 11 anos e por essa altura davam-me antes para ler a Alice Vieira e a colecção Uma aventura e a Florbela Espanca (que eu roubava numa atitude de rebeldia literária) mas a Anne Frank não.
Lia o Principezinho nas aulas de Moral e reli-o depois novamente para me formar eticamente.
- Não sabes quem é a Ane Frane tia?
- Anne Frank.
- A Anne Frank não tinha amigos.
- Porquê?
- Porque estava na guerra.
- Coitadinha.
- Pois, e então ela fez uma amiga inagiária
- Imaginária.
- Iaginária, que era a gatinha Kitty.
- A sério? A Kitty era a melhor amiga da Anne Frank?? Meu Deus!!!
- A Kitty era muda.
- Muda?
- A Kitty não tem boca mas falava com o coração. Sabes tia, não faz mal não ter boca e ser muda. Não tem importância nenhuma porque fala com o coração.
Não tem importância nenhuma.
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