1.
Desço as escadas e peço, numa oração rápida, para Deus livrar o meu coração do ódio que nele cresce como uma massa bem fermentada a levedar ao calor.
Torna-se claro para mim que ter ódio no coração logo de manhã é como uma náusea, deve ser como alguns fumadores me dizem que não gostam de fumar em jejum ou de dizer asneiras logo de manhã, é como uma coisa que me conspurca, todo este ódio consubstanciado numa raiva que torna as minhas mãos tensas.
Mas nada que uma oração rápida não resolva.
Fecho os olhos, e penso nos meus pés na levada da azenha, água doce vinda do açude, cobras e toupeiras de água, e pronto, fico menos odiosa, talvez mais radiosa, certamente mais feliz.
2.
O meu primeiro sonho com um homem casado ocorreu há mais de um mês, quando sonhei que um amigo de infância - casado com outra amiga de infância - tentava abraçar-me no carro, daqueles abraços complicados e engenhosos no banco da frente, e ele às tantas levava as mãos à cabeça, como quem diz que faço eu a trair a minha esposa e eu acordei a pensar que os homens casados afinal são só rapazes da minha idade.
Depois, mais recentemente, um outro casado contava-me da sua vida - coisas da vida adulta de casal - e eu distraí-me a reparar que os seus olhos, à volta da pupila, tinham uma gradação de tons, tons terra, que lindos olhos, às tantas ele fez-me uma pergunta e eu disse: hã? desculpa distraí-me, dei uma risadinha e toquei-lhe ao de leve no braço e pensei pronto sou uma cabra, que se atira a homens casados, saí do pé dele assim que pude e empurrei mais umas quantas coisas para o meu inconsciente se entreter.
Um bebé bolsou para cima de mim, todos à minha volta são casados, mas houve alguém que disse que eu ficava bem com um bebé no colo, eu fiquei mal disposta, mal humorada, senti o ódio a crescer, expliquei que adorava ter filhos e que nem sequer abordava esse assunto em publico porque me custava, pensei vou mata-las a todas, essas todas que só sentem a solidão aguda, nunca é crónica como a minha.
Têm fases más, discursam dias a fio sobre elas, sofrem mas depois passa, mas depois vão para casa jantar com o marido e filhos.
Sou como uma cadela raivosa, a rosnar baixinho sem ninguém notar.
Sou uma doente crónica.
Como se a solidão se instalasse em mim como as minhas outras doenças crónicas, e tenho a ideia de que a dos outros passa mas esta fica. Crónica.
Bem sei, é uma ilusão, todos sofremos.
3.
Uma carta do Chade endereçada aos meus pais.
Quis lê-la.
Perseguições, fome, miséria.
Calei-me.
Não digas mais nada.
Quando uma pessoa fica a saber coisas sobre a vida, já não olha da mesma forma para os cartazes do cinema no Corte Inglés.
Fica a lembrar-se da carta do Chade, tabuleiro com comida da Gonatural nas mãos, a pensar no sofrimento dos outros, na ternura dos outros, a caligrafia do comboniano do Chade, a mandar saudades, a dizer que é difícil mas que se habituou e que agora é feliz, e eu ali, de tabuleiro nas mãos, não há nenhum filme bom, o que havia os outros já viram, pensei que é como quando no concerto eu disse a quem estava ao meu lado: até amanhã, vou-me perder de vocês porque eu vou ficar a dançar sem querer saber de ninguém, amanhã falamos, eu vim sozinha, posso ir sozinha, fico bem sozinha a dançar.
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