- Era um saco de ossos muito cheio, eram uns bons ossos.
O que a prima Celeste queria dizer era que até os ossos do meu avô eram bons.
Foi mais ou menos nesse momento que a minha irmã o viu.
Ali estava, meio desfeito, no meio da terra revolta, um sapato enterrado há 39 anos.
Um sapato do meu avô.
Eu sonhei com o meu avê na semana antes de ter sido diagnosticado cancro à minha avó (acho que até falei disso aqui no blog).
E quando me deram notícia da doença fatal, eu acenei com a cabeça, então era isto que ele me queria dizer.
Olhei para o sapato, pensei que devia pedi-lo ao coveiro Florêncio, pensei: tenho que mostrar à minha mãe, estava a chover e frio, estava ainda muita gente, eu ainda disse mãe, é um sapato do avô, acho que ela não percebeu, foi tudo horrível, eu sei, mas se eu não fizer qualquer coisa vamos ficar sem o sapato, vai ficar novamente na terra.
Não consegui pegar nele, nem pedi-lo ao coveiro.
Foi toda a gente embora.
Ficamos encostados uns aos outros (os 7, agora somos 7), a ver o final da vida, à chuva, a falar sobre o sapato.
O coveiro Florêncio ia contando que o meu avô lhe matou muitas vezes a fome, estava cada vez mais frio e nós cada vez mais tristes.
Reparamos então em quem estava agora (sepultada em Maio) em frente da minha avó:
a Rosara Chapina!
Começamos a rir, a Rosara Chapina era uma amiga da minha avó, com a qual ela tinha muitas aventuras, todas elas conhecidas por nós, eram as duas parecidas no essencial: não tinham vergonha de viver. (como eu tantas vezes tenho...)
E ali estavam agora as duas, o meu pai disse que de certeza que estão a brincar no céu, eu preferia ainda mais uns anos a ve-la na terra, eu ainda choro muito, ainda tenho muito para chorar, mas a minha avó era pragmática e nas suas últimas horas, ela fez um ruido, eu acorri, ela perguntou-me "o que foi agora?", "é que avó tem soluços e eu assustei-me", disse eu, a respirar fundo porque ainda não tinha chegado a hora e então ela disse, para que eu não me esquecesse:
"Soluços vão, soluços vêm
merda para quem os tem".
Subscrever:
Enviar feedback (Atom)
Sem comentários:
Enviar um comentário